O dia 27 de abril assinala a passagem de um importante episódio na história do Tribunal de Contas da União. Foi a data na qual, há 129 anos, em 1893, Inocêncio Serzedello Corrêa assinou a célebre carta demitindo-se do ministério da Fazenda em defesa do Tribunal de Contas. O acontecimento é bastante conhecido, mas sempre vale a pena rememorar o contexto em que ocorreu.
O ministro da Viação (equivalente a ministro dos Transportes), Limpo de Abreu, recebera de Floriano Peixoto, vice-presidente da República no exercício da presidência, a incumbência de nomear um irmão do ex-presidente Marechal Deodoro, Pedro Paulino da Fonseca. No final de um mês, o ministro mandou que lhe pagassem o ordenado, um conto de réis. A despesa foi ao Tribunal de Contas para registro.
Instalado em 17 de janeiro daquele ano, o Tribunal mal completara cem dias de atuação. A rotina de trabalho incluía o exame das despesas do governo, mediante os avisos oriundos dos ministérios. Nos termos do regulamento editado por força do Decreto provisório 1.166, de 1892, que alterou o modelo criado por Ruy Barbosa no Decreto 966-A, de 1890, o controle era exercido a priori, adotando-se a sistemática trasladada do modelo italiano, do veto impeditivo absoluto. Todos os atos oriundos do Executivo, suscetíveis de criar despesa ou comprometer as finanças da República, eram submetidos primeiramente ao Tribunal, que os registraria e lhes poria o seu visto, caso não violassem dispositivos de lei ou não excedessem os créditos votados pelo Legislativo. Desse exame poderia resultar a recusa do registro e a devolução do ato à origem. No caso do ato de nomeação de Pedro Paulino, não havia previsão orçamentária para a despesa. O Tribunal recusou o registro e comunicou o fato ao ministro da Viação.
Floriano, em despacho com o ministro Limpo de Abreu, soube da recusa e teria dito: “São coisas do meu amigo, ministro da Fazenda, que criou um Tribunal superior a mim. Precisamos reformá-lo”.
Dito isso, mandou chamar seu ministro da Fazenda, Serzedello Corrêa, e o interpelou sobre se já havia no País quem mandasse mais do que ele, em alusão ao Tribunal. O ministro da Fazenda respondeu-lhe com tranquilidade: “Não. Superior a V.Ex.ª, não. Quando V.Ex.ª está dentro da lei e da Constituição, o Tribunal cumpre as suas ordens. Quando V.Ex.ª está fora da lei e da Constituição, o Tribunal lhe é superior. Reformá-lo, não podemos. O meu colega não podia criar lugar para dar a Pedro Paulino. Só o Congresso poderia fazê-lo. Portanto, o que realizou foi ilegal”.
Passados oito dias, Floriano, não satisfeito com a atitude, elaborou e enviou ao ministro da Fazenda minuta de decretos reformando o Tribunal, acompanhada de lacônico bilhete: “Mande fazer e traga, que quero assinar amanhã”. A reforma pretendida modificava, basicamente, o sistema de registro, impondo ao Tribunal a figura do registro sob protesto.
Serzedello deve ter passado o resto do dia 26 em seu gabinete no edifício à rua do Sacramento remoendo aquela ordem do Marechal de Ferro. Aceitava ou não a reforma que se tentava promover no Tribunal? Cedia ao amigo de caserna e renunciava a todos os princípios que haviam norteado sua carreira política e militar até aquele momento? Ou resistia, em defesa do Tribunal, e punha em risco o cargo e o próprio futuro diante de um presidente que com facilidade mandava prender seus opositores?
No dia seguinte, 27 de abril de 1893, uma quinta-feira, tomou a decisão. Foi ao Palácio ver o vice-presidente, não com os decretos solicitados. Redigiu carta dirigida a Floriano na qual se escusava de cumprir a ordem do chefe. “Esses decretos anulam o Tribunal de Contas, o reduzem a simples chancelaria do Ministério da Fazenda, tiram-lhe toda a independência e autonomia, deturpam os fins da instituição, e permitirão ao Governo a prática de todos os abusos e vós os sabeis — é preciso antes de tudo legislar para o futuro.”
E arrematou, demitindo-se, elegantemente: “Pelo que venho de expor, não posso, pois, Marechal, concordar e menos referendar os decretos a que acima me refiro e por isso rogo vos digneis de conceder-me a exoneração do cargo de Ministro da Fazenda, indicando-me sucessor.”
Entregue a carta no mesmo dia 27 de abril, o resto virou história. Serzedello foi, de fato, exonerado do Ministério, mas sua atitude ajudou a preservar o Tribunal do autoritarismo daquele e dos futuros governantes, e assegurou à Corte de Contas a estatura que lhe conferira o gênio Ruy Barbosa.
Por esse gesto, Serzedello Corrêa engrandeceu-se perante a República e imortalizou-se na história da Corte de Contas. E é em função desse episódio que ainda hoje, e todos os anos, comemoramos o 27 de abril como a data da afirmação do Tribunal de Contas, permanecendo o dia registrado na galeria das grandes datas do Tribunal.